As desigualdades vividas no cotidiano da sociedade, no que se refere às relações de gênero, não se definiram a partir do econômico, mas, especialmente a partir do cultural e do social, formando daí as "representações sociais" sobre as funções da mulher e do homem dentro dos variados espaços de convivência, ou seja: na família, na escola, na igreja, na prática desportiva, nos movimentos sociais, enfim, na vida em sociedade.
Nos últimos cinqüenta anos um dos fatos mais marcantes ocorridos na sociedade brasileira foi a inserção crescente das mulheres na força de trabalho. Este contínuo crescimento da participação feminina é explicado por uma combinação de fatores econômicos e culturais. Primeiro, o avanço da industrialização transformou a estrutura produtiva, a continuidade do processo de urbanização e a queda das taxas de fecundidade, proporcionando um aumento das possibilidades das mulheres encontrarem postos de trabalho na sociedade. Segundo, a rebelião feminina do final dos anos 60, nos Estados Unidos e Europa, chegou como uma onda nas nossas terras, em plenos anos de chumbo; apesar disso, produziu o ressurgimento do movimento feminista nacional fazendo crescer a visibilidade política das mulheres na sociedade brasileira(Melo, mimeo/2003).
A população brasileira, segundo dados do IBGE/CENSO 2000, é de 169.799.170 milhões de habitantes, com participação de 51,31% de mulheres. Não há dúvida de que há uma estreita relação entre o trabalho e a educação no processo de desenvolvimento dos grupos e da sociedade como um todo. Segundo dados do IBGE/2000, a PEA brasileira, em 2001, tinha uma média de escolaridade de 6,1 anos, sendo que a escolaridade média das mulheres ocupadas era de 7,3 anos e a dos homens de 6,3 anos.
Uma conclusão corrente é a de que o cidadão ou a cidadã com maior nível de escolaridade tem mais oportunidade de incluir-se no mercado de trabalho. Como afirma Lena Lavinas, em estudo recente, além da inclusão no mercado, constata-se uma significativa melhora entre as diferenças salariais. Entretanto, mesmo com o expressivo crescimento da mulher no mercado de trabalho, como já foi colocado, ainda não foram superados os obstáculos de acesso a cargos de chefia e diferenças salariais; estes, embora tenham diminuído desde os anos 90, ainda permanecem e significam que as mulheres aceitaram postos de trabalhos miseráveis para sobreviver com sua família, já que as taxas de desemprego feminino são significativamente maiores do que as da população masculina. As trabalhadoras brasileiras concentram-se nas atividades do setor de serviços; 80% delas são professoras, comerciárias, cabeleireiras, manicures, funcionárias públicas ou trabalham em serviços de saúde, mas o contingente feminino mais importante está concentrado no serviço doméstico remunerado, primeira ocupação das mulheres brasileiras. São negras cerca de 56% das domésticas e usufruem ainda os menores rendimentos da sociedade (Melo, 1998).
O desemprego tem atingido mais fortemente as mulheres, conforme dados da OIT (com base nos microdados da PNAD 2001). Hoje, o desemprego está em uma taxa de 11,7%, 31% superior a dos homens (7,4%). No que se refere às mulheres negras (13,8%), o percentual é 86% superior a dos homens brancos (6,5%). Grande aumento nessa diferenciação se deu entre 1992 e 2001. Preocupante é a taxa de desemprego juvenil, destacando-se os negros e as mulheres: jovens brancos têm taxas de 13,6%, jovens negras de 25% e jovens brancas 20%.
A presença das mulheres no trabalho precário e informal é de 61%, sendo 13% superior à presença dos homens (54,0%). A mulher negra tem uma taxa 71% superior a dos homens brancos e destas 23% são empregadas domésticas.Necessariamente, a análise da situação da presença feminina no mundo do trabalho passa por uma revisão das funções sociais da mulher, pela crítica ao entendimento convencional do que seja o trabalho e as formas de mensuração deste, que é efetivada no mercado.
O trabalho não remunerado da mulher, especialmente aqueles realizados no âmbito familiar, não são contabilizados por nosso sistema estatístico e não possuem valorização social - nem pelas próprias mulheres - embora contribuam significativamente com a renda familiar e venham crescendo, englobando inclusive atividades exercidas para grandes empresas. O que vem sendo concluído com os estudos sobre a mulher é que ocorre evidentemente uma dificuldade em separar casa-fábrica ou vida pública-privada, mesmo em se tratando da participação no mercado de trabalho, na população economicamente ativa.
Doaré analisa uma das conseqüências da internacionalização do processo de produção e formas de sua realização, ressaltando a gestão da mão-de-obra barata, mecanismo que envolve a maior parte da força de trabalho feminina, com dados de 1975 que ainda se mantêm atualizados: "... a subcontratação - uma das formas de deslocamento geográfico industrial - apesar de abranger 725.000 trabalhadores em 39 países (1975), de acordo com Frobel, é menos um fenômeno quantitativamente importante em escala mundial, do que uma expressão particularmente significativa de uma nova exigência do capital, através da exploração da mão-de-obra vulnerável dos países subdesenvolvidos, em condições específicas, e principalmente das mulheres. Com efeito, trata-se menos, nesta circunstância, da exportação de capitais do que da exportação de uma relação social de produção que integra a divisão sexual às novas formas de internacionalização do trabalho." Somente a partir de uns 10 a 15 anos atrás, especialmente desde o período Constituinte, 1987/88, as questões que envolvem as relações de gênero no trabalho e na produção encontraram maior espaço nas pautas importantes de discussão de políticas de emprego, como sindicatos, dos partidos políticos, e outros setores similares.
Há que se reconhecer, neste contexto, que seja por falta de consciência política ou pelo desejo de manter o "status sexual" ? muitos ainda apóiam a "partição" sexual do trabalho, como um procedimento "natural" ? que o panorama continua. Na verdade, é toda uma formação cultural que contribuiu e contribui com esse quadro de ?naturalização" da questão, a fragmentação da sociedade em dois espaços hierarquizados, em função dos sexos, são temas omitidos na maioria das análises sócio-econômicas de nossas sociedades. As contradições da relação homem/mulher são diluídas na aparente neutralidade dos conceitos científicos; outras vezes delimitam artificialmente os campos de análises, como podemos observar mais freqüentemente na educação, na economia, na sociologia do trabalho e na sociologia da educação.
Sejam as operárias de fábricas, as trabalhadoras do comércio ou do campo, e outras, elas convivem com problemas de ordem privada que em muito dificultam seu desempenho como profissional, suas necessidades de qualificação e requalificação, afetando o cotidiano de toda família. No entanto, os homens dificilmente consideram tais problemas também como parte de sua vida. São dificuldades que, embora internas a questões da vida familiar, refletem sobre as condições de exploração da força de trabalho - apresentando-se, de fato, como um problema coletivo, tomando caráter público - como é o caso da não existência de infra-estrutura (creches, restaurantes, lavanderias, etc.), que apoiariam a saída para o trabalho.
Pesquisas sobre a utilização de novas tecnologias indicam que as mulheres estão sendo excluídas dos treinamentos que possibilitam o conhecimento das máquinas e de programação, sendo mantidas nas funções que exigem menos qualificação, como já nos referimos. Salvo esparsas exceções, raramente a mulher consegue penetrar em áreas onde sejam feitos diagnósticos e tomadas decisões técnicas. Sua atuação é sempre restrita à esfera de execução do que já foi decidido. Mesmo hoje, com as mudanças na organização do processo de trabalho, ela ainda não participa do processo decisório. Nas fábricas, ela está na linha de montagem, no comércio, está no balcão, no campo, está na colheita, e assim por diante.
Finalmente, hoje observa-se a possibilidade concreta de uma nova ordem que inclui a relação complementar entre os sexos, a possibilidade de um núcleo familiar democrático e outros componentes de formação da sociedade que venham garantir a efetivação do velho/novo clamor por uma sociedade socialmente justa. Vários são os caminhos construídos pela recente história cultural de nossa sociedade e pela produção teórico-conceitual que explicitam a existência das diferenças, possibilitando maior clareza e uma concepção bem elaborada sobre a questão, de forma que não permitam que seja dada uma continuidade ao processo de desigualdade, gerada a partir das diferenças.
* Zuleide Araújo Teixeira é Subsecretária de Planejamento e Orçamento da Secretaria Especial de Políticas para as mulheres.
Pesquisa organizada por: Rejanne Soares - Comunicação AMA
Fonte: www.universia.com.br